Seleção virtual em vez de tapete vermelho em Cannes 2020
O coronavírus venceu: o mais importante evento cinematográfico do mundo está definitivamente cancelado em 2020. Até então, mantinha-se a intenção de transferir para mais tarde a edição atual do Festival de Cannes, normalmente realizado em meados de maio.
No entanto, os meses de verão (junho a agosto na Europa) estão fora de questão, diante das numerosas restrições de contato ditadas pela pandemia. No outono o calendário global de festivais é apertado: Cannes não queria roubar a cena dos grandes festivais, sobretudo Veneza e Toronto. Depois é tarde demais, os melhores filmes e cineastas do ano já terão sido laureados em outras partes do mundo. A concorrência entre os eventos de primeira linha é dura.
Mas a equipe organizadora de Cannes já investiu muito trabalho: 2.067 obras haviam sido submetidas, um número recorde, segundo comunicou o diretor artístico Thierry Frémaux na noite desta quarta-feira (03/06) em Paris. O que fazer? Simplesmente cruzar os braços e esperar que os concorrentes elejam a crème de la crème da sétima arte não combinaria com orgulho francês.
Assim, Frémaux e seus colaboradores decidiram apresentar 56 obras que receberão este ano o “selo de qualidade” de Cannes. Naturalmente, a maioria dessas produções estreará em outros festivais, mas o público estará sabendo: este é um filme que, na verdade, teria sido apresentado em maio na cidade na Côte d'Azur – que assim asssegura para si pelo menos uma espécie de exclusividade virtual.
Mais arte, menos comércio
Os organizadores abriram mão de dividir os 56 eleitos entre mostra competitiva e paralelas: se não vai haver Palma de Ouro 2020, então tampouco Palmas menores, deve ter sido o raciocínio.
Na apresentação da seleção optou-se por outra forma de categorização: 14 filmes de cineastas que participaram de Cannes, 14 de novatos no festival, 15 de estreia, dois documentários, quatro animações, uma obra coletiva e cinco comédias.
Chama a atenção a pouca quantidade de produções dos Estados Unidos a receber a distinção, sendo Wes Anderson possivelmente o diretor mais conhecido. Estrelado por Thimotée Chalamet, seu The French Dispatch narra histórias publicadas por uma revista americana na França pós-Segunda Guerra Mundial. Entre os demais quatro compatriotas de Anderson, destacam-se Falling, estreia do ator Viggo Mortensen como diretor, e a animação Soul, de Pete Docter.
Sem o show de um festival real, Cannes aparentemente deu mais espaço ao cinema de arte, e menos a considerações comerciais. Notável é terem sido selecionadas logo duas obras do diretor britânico Steve McQueen: tanto Lovers Rock quanto Mangrove abordam a discriminação de cidadãos de cor na Londres dos anos 70 e 80.
O ganhador do Oscar (12 Anos de Escravidão) negro, de 50 anos, dedica ambos ao afro-americano George Floyd, morto por um policial em Minneapolis em 25 de maio, e a “todas as pessoas negras que foram assassinadas, invisíveis e ignoradas, por serem o que são, nos EUA, Inglaterra e outras partes”.
Seleção ampla
Do Brasil, foi escolhido Casa de Antiguidades, de João Paulo Miranda Maria, que trata de racismo através da história de um operário negro (Antonio Pitanga), que vive étnica e culturalmente isolado numa antiga colônia de austríacos no Sul do Brasil. Um dia encontra uma casa com objetos que lembram suas origens. Depois que ele lá se instala, novos objetos começam a aparecer, como se o edifício tivesse vida própria.
A Alemanha faz presença com a biografia do cineasta Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) Enfant Terrible, dirigida e coescrita por Oskar Roehler. Oliver Masucci interpreta de forma convincente o artista provocador e altamente produtivo em seus primeiros anos de carreira.
É especialmente numerosa a presença francesa na seleção do Festival de Cannes. Segundo Frémaux, não se trata de uma manifestação de orgulho nacional, mas sim uma expressão da força da atual produção cinematográfica do país. François Ozon – aliás admirador declarado de Fassbinder, como prova seu Gotas D'água em Pedras Escaldantes, de 2000 – lidera essa ala com Été 85, a história de uma amizade homossexual na Normandia, na década de 1980.
Apesar de tudo, os organizadores não perderam de vista o vasto panorama do cinema internacional, concedendo seu “selo de qualidade” virtual também a produções da Bulgária, Geórgia, Armênia, Lituânia, Líbano, Egito, Israel e Congo, entre outros. A Coreia do Sul volta a fazer presença, após ter levado a Palma de Ouro em 2019 com Parasita, de Bong Joon Ho (além de ser a primeira produção estrangeira a receber o Oscar de Melhor Filme).
Nos próximos meses, Frémaux e equipe acompanharão a trajetória de seus 56 selecionados nos demais festivais e salas de exibição de todo o mundo – provavelmente com um olho que ri e outro que chora. E torcerão para que em 2021 os profissionais do cinema internacional possam estar de volta à Croisette e seu icônico tapete vermelho.
Seleção Cannes 2020:
The French Dispatch, Wes Anderson Été 85, François Ozon Asa Ga Kuru, Naomi Kawase Lovers Rock, Steve McQueen Mangrove, Steve McQueen Druk, Thomas Vinterberg DNA, Maïwenn Last words, Jonathan Nossiter Heaven: To the Land of Happiness, Im Sang-soo El olvido que seremos, Fernando Trueba Peninsula, Sang-ho Yeon In the dusk, Sharunas Bartas Des hommes, Lucas Belvaux The real thing, Kôji Fukada Passion simple, Danielle Arbid A good man, Marie-Castille Mention-Schaar The things we Say, the things we do, Emmanuel Mouret Souad, Ayten Amin Limbo, Ben Sharrock Rouge, Farid Bentoumi Falling, Viggo Mortensen Sweat, Magnus von Horn Teddy, Ludovic e Zoran Boukherma February, Kamen Kalev Ammonite, Francis Lee Nadia, Butterfly, Pascal Plante Broken keys, Jimmy Keyrouz The Truffle Hunters, Gregory Kershaw e Michael Dweck John and the hole, Pascual Sisto Here we are, Nir Bergman Un médecin de nuit, Elie Wajeman Enfant terrible, Oskar Roehler Pleasure, Ninja Thyberg Slalom, Charlène Favier Casa de antiguidades, João Paulo Miranda Ibrahim, Samuel Guesmi Gagarine, Fanny Liatard e Jérémy Trouilh 16 printemps, Suzanne Lindon Vaurien, Peter Dourountzis Garçon Chiffon, Nicolas Maury Si le vent tombe, Nora Martirosyan En route pour le milliard, Dieudo Hamadi 9 days at Raqqa, Xavier de Lauzanne Antoinette in the Cévènnes, Caroline Vignal Les seux Alfred, Bruno Podalydès Un triomphe, Emmanuel Courcol Les discours, Laurent Tirard L'origine du monde, Laurent Lafitte Septet: The story of Hong Kong, Ann Hui, Johnnie To, Tsui Hark, Sammo Hung, Yuen Woo-Ping, Patrick Tam Beginning, Déa Kulumbegashvili Striding into the wind, Shujun The death of cinema and my father too, Dani Rosenberg Aya To Majo, Goro Miyazaki Flee, Jonas Poher Rasmussen Josep, Aurel Soul, Pete Docter