Tio Zózimo: O primeiro beijo
Nem tudo que reluz é ouro. Pensamenteou Jão Rodrix com o lápis atrás da pulga. Na orelha. Consulta de Tio Zózimo. Investigando o porquê de alguns meninos, na fase difícil da vida, passagem de menino pra rapaz, no relance, adquirirem brilho raro. Luz. Diamante no futebol. Ouro na escola. Prata no violão das serenatas? Enquanto ele, nada.
De onde, de qual raiz, tinha Tio Zózimo retirado este questionamento? Nem penugem de barba ainda na cara lisa e lavada. É o que ninguém sabia. Diante do espelho do guarda roupa, no quarto, ao experimentar o uniforme do Time da Rua de Baixo, se sentia o maioral, capaz de dribles desconcertantes. Na mesa da sala, fabricando sua pipa, imaginava as manobras mais radicais, cortando o céu abaixo das nuvens. Decorando os livros, alcançar os melhores resultados nas provas bimestrais. Se sobrepunha. Grandioso.
Quando chegava a hora do vamos ver é que era. Fiasco. Mediano. No campinho ou no MEC, na decisão do lance genial, as pernas se perdiam, só os dribles fáceis, o medo. As pipas só rabiscavam figuras moderadas, sem graça, no vento. Apenas o básico. As notas escolares passavam pouco acima do vermelho. O violão só repetia o tum-tum-tum. Monótono. Sem inspiração. Era o que não era. O sonhado virava fraude. Desmilinguia na frente de todos. Desencanto.
Na boca, na hora, o gosto do ridículo. A frustração. A queda. Se repetindo. Se repetindo.
O pior. Via os meninos, das ruas, da escola. Atravessavam o mesmo processo, mas que, no de repente borboleteante, num dia ou noutro, alguns desabrochavam, rasgavam o tecido que os seguravam. Desfaziam o nó. Rompiam. Craque no futebol. Domador dos ares com as pipas mais coloridas. Um novo gênio das notas bimestrais. Nas ciências e nas humanas, duma vezada só. Bem recebidos nas rodas de moças e rapazes. Tornavam-se o que ele mais desejava ser.
A estas dúvidas duvidosas de Tio Zózimo, coçando a cabeça, fecha-fechando o olho direito, foi que Jão Rodrix respondeu, arriscando, baseando-se na própria experiência-própria. Malemá, oitenta por cento destes casos de mudança repentina de meninos vêm e advêm da circunstância da ocasião do primeiro beijo. Na boca. De língua. É o despertai. O ora ora. A ruptura com as fraldas, mamadeiras e com avental materno todo sujo de ovo.
Tio Zózimo, como nunca, sentiu o impacto do sol na placa luminosa da Casa Azul. O assovio do vento nos fios de alta tensão da Riachuelo. O perfume das onze horas do canteiro da Fonte Luminosa. O abraço das imagens dos filmes do Cine Ipiranga. Tenso. Desesperado.
Repetia para si mesmo a resposta de Jão Rodrix. O primeiro beijo. O pri-mei-ro-bei-jo. Na cabeça, a imagem da mãe. Junto ao fogão a lenha. Censurando. Reinando. O perigo do beijo. Sapinho. Sapão. Quem beija reprova de ano. Nem aprende a ler. Fuja do beijo se quiser ser bom menino.
Nunca seria bam-bam-bam, então. Como superar tal ponte sobre o rio das proibições? De que forma violar a regra do não beijar escrita na cozinha de casa pela vassoura de piaçava de cada dia? Era o fim. Nunca que seria o mais-mais-mais. Querido e admirado.
Será que Berenice, nota dez no boletim, sabia dos poderes do beijo? Por isso, bilhetinhos. Oferecimento de música no alto falante da quermesse? Tio Zózimo fugia. Medo. E agora? Medo de continuar fugindo. Pedir um beijo, nem sabia. Azar. Berenice já não mandava mais bilhetinhos perfumados. Nem gomo de laranja na merenda. Queimou a última ponte que o ligava a um provável beijo libertador. Berenice, do lado de lá da ilha da liberdade. Inalcançável.
Jão Rodrix acudiu. De novo. Uma frase poética. Um cartãozinho apaixonado. Custa tentar? Não adianta, ela não vai aceitar. A cabeça, enxame de abelha, não tinha paz. Melhor obedecer. Dúvidas brotando em pencas. Habilitou-se. Aviou-se. Sem esperança, mas desesperado. Se não surtir efeito, para sempre condenado. Toco de pau podre.
Foi, então, que se viu. Se ouviu. Se enxergou. Registrou-se em alguma página do querido diário. Ou na ata da memória.
Todo mundo se espantou num grande de repente. Tio Zózimo jogando que era uma maravilha. Aprendendo de um tudo na escola. A pipa nas nuvens do céu escrevendo versos no vento.
Aos domingos, os dois, ele e Berenice, sempre, nas matinês. A gente sabia sem saber.