“Tio Zózimo: O menino viajante”
Quem dorme com os olhos dos outros? Era o drama. Tio Zózimo nem bem terminara a Cartilha Caminho Suave. Já estava lidando para resolver o porquê da verdade mudar de cara, cor e forma a cada dia. Pode uma coisa destas?
Não que tivesse descoberto algo grave. É que o caso estava parecendo um duelo. Não de armas. De palavras. Do imaginário. Contar ou não contar?
O mundo de Tio Zózimo e das crianças do tempo dele era aquele da roça. Em volta do terreiro de secar café. Em torno da capela. Terços e rezas. à beira do campo de futebol. Bola remendada. Calção de saco de açúcar. Chuteiras sem cravo.
Mundareuzinho gostoso em que a gente corria, sorria e trabalhava para ajudar os pais. Alcançava até as montanhas do Arassu. Mais pra lá, não ia a vista. Praticamente acabava-se o mundo. Ali. Na serrinha ou na mata no horizonte. Alguns diziam que para lá do lado de lá, ficava Marialva. A gente nem acreditava.
Enquanto isso acontecia, Seo Degirdes, vindo do Sul de Minas, na fiúza de recolher dinheiro com rastelo nas plantações de café, se consolava narrando causos. Quem não gostava de ouvir?
Sabia histórias pra lá destas montanhas. Outras terras. Outras gentes e animais. Brigas, assombrações e terremotos. A gente ficava preso ao chão. Seo Degirdes alisava o bigode. Satisfeito.
O Licurgo fazia intrigas. Venenoso. Estas histórias são a forma de Seo Degirdes se sentir o maioral.
Mas duma feita, um dos meninos mais crescidos, um tal de Jão Ródrix, não avisou nem pai, nem mãe. Viajou para Jandaia. De bicicleta. De carona. E até de ônibus. Resolveu que ia. Bateu lá. Rompeu com os horizontes da serrinha.
A mãe chorou. Reclamou. Rezou. Benzeu. Este menino não tem juízo. O mundo é perigoso. Daí o pai só falava. É menino homem, velha, ele sabe se virar.
No outro dia, quando o menino homem, Jão Ródrix, já estava de torna-viagem, todo mundo quis ouvir suas histórias. Como era? Como não era? Se a estrada era curva. Se não tinha assombração. A gente é curiosa um tanto demais da conta.
No outro mês, com o dinheirinho contado, Jão Ródrix ampliou o voo. 15 dias planejando. Ia conhecer São Pedro do Ivaí. Contou só pra dois colegas. Mas bateram com a língua nos dentes. Vazou. O projeto se espalhou. Licurgo não perdeu tempo. Peçonhento. Esparramava intrigas no ar. Depois de lutar pra recuperar o povo para suas histórias, Seo Degirdes já está tremendo.
A mãe chorou. Fez promessas. O pai garantiu. É menino homem, sabe se virar.
Desta vez teve até assistência na partida. O povaréu na porteira do sitio. Logo de manhã. Será que ele vai, mesmo? Já foi? Não foi?
Quando deram por fé, ele lá e vinha subindo o carreador e cumprimentando todo mundo e já partindo. Sumiu sozinho na curva, direção do Matão. Três dias. Ida e volta.
Licurgo aproveitou para pôr fogo nas conversas. Serpente. Seo Degirdes está tentando, de todas as formas, reconquistar as atenções. Mas o povo está metade preocupado com a viagem e a outra metade curiosa. Não sei se vai dar, não.
Deu-se a volta. O retorno. Houve, mesmo, fila. Mais de uma semana. Todo mundo queria ouvir. Uma, duas até três vezes, cada trecho da aventura de Jão Ródrix. Licurgo queria ver briga. Assoprava a fogueira das vaidades. Agora, Seo Degirdes vai ter de contar as histórias escandalosas que ele sabe. De traição. De tocaias. De fuga de moças da casa do pai. Esfregava as mãos.
Tempinho depois, foi que surgiu o drama pra Tio Zózimo. Quando soube. Quando lhe contaram. E agora. Avisava Seo Degirdes, ou não? Jão Ródrix estava preparando as malas. Seria um golpe duro para o contador de histórias? Licurgo soprando brasas. Gasolina. Contando com tragédia.
Contava ou não contava. Jão Ródrix estava indo pra Aparecida do Norte. Contou. Seo Degirdes sorriu. Largo. Ele também gostava de ouvir as histórias e aventuras do menino viajante.