“Livros que aquecem, enquanto a realidade embrutece”
“Por você faria isso mil vezes” – frase proferida pela personagem Hassan a seu melhor amigo, Amir, que lhe pediu que resgatasse a última pipa do campeonato para que fosse o campeão. Hassan foi violentado por outros garotos a caminho de cumprir a promessa, enquanto Amir apenas observou a cena, sem ajudá-lo. Essa passagem do livro O caçador de pipas, do autor afegão Khaled Hosseini, é arrepiante e nos remete à fragilidade das amizades de hoje, mais centradas nos momentos de diversão, mais para Amir do que para Hassan.
A montanha e o rio – romance chinês que protagoniza irmãos gêmeos, criados em realidades diferentes e que, mais tarde, apaixonam-se por Sumi que fica dividida entre dois amores tão distintos. Ama o bom e ama o mal, indo contra os contos de fadas e padrões sociais que habitamos.
“Apaixonada por dois irmãos! Eu amaldiçoava o meu próprio destino, as três facas cravadas nele. Quem eu deveria escolher? Shento, com sua crueza da gente das montanhas e sua sede desesperada? Ou Tan, com o coração amoroso que tranquilizava minha mente, sem deixar espaço para a mágoa e a solidão, fazendo com que eu não precisasse mais nada? Um morreria por mim. O outro não viveria sem mim.”
Esse romance traz à tona o clássico brasileiro Dois irmãos, do manauense Milton Hatoum, cujos protagonistas também são gêmeos, de personalidades discrepantes e apaixonados pela mesma mulher. Esse amor só veio a contabilizar o ódio que já sentiam um pelo outro desde sempre, causando dor intensa à personagem Zana, mãe dos mesmos, que sonha uma vida toda em ver os filhos se perdoando. Em seu leito de morte, ela sela esse desejo, digno de todas as mães do mundo, entre espasmos de esperança e aceitação. “_ Meus filhos já fizeram as pazes?”
E o que dizer dos gigantes russos? León Tolstói ao arguir que “Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e de luz” revela sua maestria ao construir personagens e enredo tão reais, tão humanos que parecem levados pela mão do autor para as páginas de Guerra e paz e Anna Kariênina. O mesmo se aplica para Fiódor Dostoiévski, capaz de, sutilmente, apresentar uma figura tão singular, reveladora de facetas psicológicas pouco exploradas até então, no romance Crime e castigo.
São inúmeras, milhares de histórias espalhadas pelo mundo e que se eternizam em nossos corações, porque trazem consigo o poder de tocar nossas almas e mudar nossos destinos. Devemos ler os clássicos de todas as nacionalidades, pois eles não são voláteis como os best sellers, devorados em um fôlego e esquecidos em dois. Os clássicos necessitam de pausas, de reflexão, são densos, etéreos… e eternos.
E para quem nunca leu, ou mesmo diz odiar leitura, eu só tenho a dizer que está perdendo uma das maiores chances de conhecer, reinventar, transcender, cultivar, enfim… realizar no instante de uma página, uma vida tão atrevida, que parece tão vivida e aquecida, a ponto de nos abduzir da realidade embrutecida.