O São Paulo foi rebaixado em 1990? Veja por que após 30 anos o tema ainda é polêmico
Apenas 274 pessoas estavam no Morumbi na tarde de 20 de junho de 1990. O São Paulo encarava o Noroeste e tinha como concorrentes o duelo entre Brasil x Escócia, pela primeira fase da Copa do Mundo da Itália, e a péssima campanha que o time fazia naquele Campeonato Paulista.
Era a última chance de o time comandado pelo uruguaio Pablo Forlán se manter na disputa pelo título estadual, mas é compreensível a falta de argumentos para lotar as arquibancadas de um estádio que, na época, recebia mais de 100 mil torcedores em jogos importantes.
A goleada de 6 a 1 sobre o Noroeste não serviu para nada. O Botafogo, de Ribeirão Preto, empatou em 0 a 0 com a Inter, em Limeira, e ficou com a vaga.
No dia seguinte, tempos pré-internet, ao pegar os principais jornais do estado, o são-paulino não sabia exatamente o tamanho do tombo que havia levado: o clube havia sido eliminado precocemente no Paulista ou, além disso, ainda tinha sido rebaixado para a segunda divisão estadual?
Desde então, 30 anos depois, a serem completados neste sábado, as discussões não acabaram. O São Paulo foi rebaixado? O regulamento diz que não. Mas é possível ter outra interpretação. E por isso o tema gera tanta polêmica.
– Nos sete anos em que eu fiquei no São Paulo, em todos os anos eu disputei título. Não lembro de descenso não, não lembro de segunda divisão não – disse o ex-lateral Zé Teodoro, que esteve em campo contra o Noroeste.
– Coisa ruim ninguém lembra, né? Se fosse título tinha lá faixa, medalha, troféu. Você dá um google e a primeira coisa que aparece é essa matéria da Folha, mostrando o rebaixamento do São Paulo – contou o jornalista Fernando Santos, autor de reportagem da Folha de S.Paulo, um dia depois do jogo, que afirma que houve a queda.
– Eu, sinceramente, vou continuar batendo na mesma tecla, na minha cabeça o São Paulo sempre foi time de primeira divisão – rebateu Zé Teodoro.
Regulamento
Não é fácil entender como foi disputado o Paulista de 1990. Eram 24 clubes, divididos em dois grupos de acordo com a classificação do ano anterior – os 12 melhores no Grupo 1, os 10 piores, mais Ponte Preta e Ituano, que tinham subido, no Grupo 2.
Na primeira fase, as equipes enfrentaram os rivais do outro grupo. Na segunda fase, jogaram contra os adversários do mesmo grupo.
Classificaram-se para a quarta fase os três melhores times de cada grupo, somados os pontos das duas primeiras fases, mais os seis times que tiveram o maior número de pontos na classificação geral, independentemente do grupo.
O São Paulo, com 23 pontos (na época, a vitória valia dois pontos), foi o oitavo colocado do Grupo 1 e não conseguiu essa classificação.
Mas cadê a terceira fase?
Calma.
A terceira fase foi uma repescagem. Todos os 12 times que não conseguiram a classificação foram divididos em mais dois grupos de seis equipes, que se enfrentaram em turno e returno – as partidas aconteceram durante a disputa do Mundial da Itália. O primeiro de cada grupo foi à quarta fase.
O São Paulo chegou à última rodada da repescagem precisando vencer o Noroeste, mas dependia de uma derrota do Botafogo, o que não aconteceu. O clube foi eliminado do Paulista.
Na quarta fase, Bragantino, no Grupo Preto, e Novorizontino, no Grupo Vermelho, surpreenderam e, como melhores de cada grupo, avançaram para disputar a “Final Caipira”, vencida pelo Bragantino.
Contexto do São Paulo
O São Paulo vivia tempos gloriosos. Nos dez anos anteriores, venceu o Paulista em 1980, 1981, 1985, 1987 e 1989. Também tinha sido campeão brasileiro em 1986 (veja abaixo) e vice em 1989.
Em 1990 começou o ano com Carlos Alberto Silva como treinador, mas o contrato se encerrou no meio do Paulista e não foi renovado. Pupo Gimenez comandou o time interinamente em parte do torneio.
Houve troca também de diretoria. Juvenal Juvêncio tentou se manter por mais dois anos na presidência do clube, mas foi derrotado nas eleições, em abril, por José Eduardo Mesquita Pimenta. A nova diretoria contratou Pablo Forlán, ídolo tricolor, que comandou o time na repescagem do Paulista.
Às vésperas do jogo contra o Noroeste, o ponta Anílton e o zagueiro Mazinho sofreram grave acidente de carro em São Carlos. Anílton ficou afastado por meses, e Mazinho, tetraplégico.
Durante a repescagem, o time sofreu com muitos jogadores lesionados e perdeu Ricardo Rocha, zagueiro que foi convocado por Sebastião Lazaroni para disputar a Copa da Itália.
Repercussão
A polêmica começou no dia seguinte à partida contra o Noroeste. Os dois principais jornais do estado trataram de formas diferentes as consequências daquele jogo.
“São Paulo goleia, mas Botafogo ganha a vaga”, escreveu o Estado de S.Paulo, enquanto a Folha de S.Paulo imprimiu drama consideravelmente maior: “São Paulo vai disputar a Segunda Divisão em 91”.
O Estadão se limitou a relatar a partida. No texto, cita que o resultado faria o São Paulo jogar o “Grupo B do ano que vem”. E diz: “O campeonato de 91 terá 28 times divididos em dois grupos de 14, e o São Paulo terá de ficar entre os primeiros nas duas primeiras fases para, na quarta, voltar a enfrentar Corinthians, Palmeiras, Portuguesa e Santos”.
O jornal apostava numa fórmula semelhante à de 1990 para o torneio do ano seguinte.
A Folha, por outro lado, afirma que o São Paulo, em 1991, disputaria a Série B do Paulista, “sem direito a lutar pelo título”. Para o jornal, a fórmula do ano seguinte consistia em uma Série A, com os 14 melhores de 1990, que decidiriam o campeão paulista, enquanto outros 14 times da Série B brigariam por uma única vaga, para o campeão, pelo acesso para a elite em 1992.
– Estamos vivendo um pesadelo – disse à Folha, após a vitória sobre o Noroeste, o então diretor de futebol do São Paulo, Fernando Casal Del Rey. Ele não quis comentar o episódio ao GloboEsporte.com.
A Folha baseava-se em declarações do então presidente interino da Federação Paulista de Futebol, Antoine Gebran – o titular, Eduardo José Farah, estava na Itália com a seleção brasileira.
Dois dias antes do jogo no Morumbi, a Folha publicou a possibilidade de o São Paulo jogar uma “espécie de segunda divisão camuflada, sem direito a lutar pelo título”.
– Se você pega a minha matéria da Folha, lá no texto tem os jogadores do São Paulo lamentando: “caímos, agora vamos ter que disputar a segunda divisão, (vamos) cumprir o regulamento” – conta o jornalista Fernando Santos.
– Eu me lembro muito de ter lido na revista Placar, que diz: o Paulista não terá rebaixamento. Na edição 1.024, de 26 de janeiro de 1990. Eu lembro disso e de entrevistas do Farah, do começo de 1990, em que ele explicava que o campeonato não teria rebaixamento – afirma o jornalista Paulo Vinícius Coelho, blogueiro do GloboEsporte.com e comentarista da Globo.
– Outra coisa que é importante é a matéria do Estadão. Diferentemente da Folha, o Estadão não rebaixa o São Paulo. A matéria do Estadão não diz que o São Paulo foi rebaixado, fala que o São Paulo não passou pela repescagem, não se classificou – completa.
– Eu, infelizmente, não consegui nunca mais achar, quando a polêmica se estabeleceu, uma entrevista do senhor Eduardo José Farah (presidente da FPF), antes do jogo que derrubou o São Paulo, dizendo com todas as letras que o São Paulo cairia para a segunda divisão. Essa era a palavra dele – lembrou o também jornalista Juca Kfouri, que dirigia a Placar naquela época.
Tinha rebaixamento?
A polêmica está no artigo 50 do regulamento do Campeonato Paulista de 1990. Ele, primeiro, determinava que o Paulista de 1991 teria 28 clubes, divididos em dois grupos de 14.
Depois, informava que a definição dos grupos de 1991 respeitaria a classificação de 1990: os 14 classificados para a quarta fase estariam no Grupo I, enquanto que os dez eliminados na repescagem se juntariam às quatro equipes que subissem da Divisão Especial para formar o Grupo 2.
O texto não avança na fórmula de disputa do torneio.
Por fim, no parágrafo 2º, afirma que o Campeonato Paulista de 1990 não terá descenso à Divisão Especial. E estipula mudança para o ano seguinte, com o rebaixamento de uma equipe e o acesso de outra.
Na íntegra, como foi datilografado:
Artigo 50 – De acordo com decisão unânime do Conselho Arbitral da Primeira Divisão de Futebol Profissional, a partir do Campeonato de 1991, a Primeira Divisão será integrada por 28 (vinte e oito) associações, sendo obrigatoriamente divididas em 2 (dois) Grupos de 14 (catorze) associações cada, respeitando o acesso de 4 (quatro) associações da Divisão Especial de Futebol Profissional do Campeonato de 1990.
Parágrafo 1º – Para o Campeonato Paulista da Primeira Divisão de Futebol Profissional de 1991, o Grupo I será constituído pelas 14 (catorze) associações classificadas para a disputa da Quarta Fase do Campeonato de 1990, e o Grupo II será constituído pelas 10 (dez) associações restantes, que não se classificaram para a Quarta Fase e mais 4 (quatro) advindas do Acesso da Divisão Especial de 1990.
Parágrafo 2º – No Campeonato Paulista de Futebol Profissional de 1990, não haverá descenso à Divisão Especial de Futebol Profissional. Mas, a partir de 1991, ou a cada ano haverá o descenso de uma associação da Primeira Divisão de Futebol Profissional e o acesso de uma associação da Divisão Especial de Futebol Profissional.
– Não é que o regulamento não previa que haveria rebaixamento, ele expressamente previa que não haveria rebaixamento. O pessoal fala muito de que o São Paulo virou a mesa para ficar na primeira divisão, mas pelo contrário: teriam virado a mesa se tivessem derrubado o São Paulo de divisão – disse o pesquisador Alexandre Giesbrecht.
– O regulamento avaliza as minhas lembranças, das entrevistas do Farah. E tem o texto, no artigo 50, parágrafo 2º, estou falando de memória, que diz: “Não haverá descenso”. A nomenclatura era Campeonato Paulista da primeira divisão – complementou Paulo Vinícius Coelho.
Fernando Santos tem opinião diferente:
– É importante lembrar que naquela época, anos 1990, anos 1980, essa cultura de virada de mesa, de regulamentos mal elaborados, dúbios, que deixavam muitas dúvidas, aquilo fazia parte da cultura do futebol. Três anos antes teve a polêmica da Copa União.
– Essa é a velha questão da diferença entre o legítimo e o legal. Não é muito diferente, embora seja, do que aconteceu em 1987, com a Copa União. A história do Flamengo e do Sport. Evidentemente o campeão legítimo é o Flamengo, o campeão legal é o Sport – concordou Kfouri, que concluiu:
– Isso é típico da tradição cartorial brasileira, de fazer regulamentos e constituições que permitem ambiguidade.
Confusão que se acumula
É preciso voltar a 1987. O Paulista tinha 20 times e, no início, decidiu-se pelo rebaixamento de quatro equipes para o de 1988. O regulamento foi alterado com o campeonato em andamento, e duas equipes seriam rebaixadas. No caso, Ponte Preta e Bandeirante.
Elas não se conformaram: com o argumento de que o regulamento havia sido alterado no meio do torneio, iniciaram uma batalha jurídica para permanecer na primeira divisão. Os clubes chegaram a ter liminar a favor, depois cassada.
A tensão nos bastidores fez com que a Federação Paulista decidisse inchar o campeonato nos anos seguintes, eliminando o rebaixamento em 1988, 1989 e 1990, chegando a um torneio com 28 clubes em 1991 – número que continuaria crescendo até os 30 de 1993.
Em 1994, a Federação criou as Séries A-1 e A-2. Os 12 melhores do Grupo 1 e os quatro melhores do Grupo 2 de 1993 formaram a Série A-1, enquanto os quatro piores do Grupo 1 e os 10 piores do Grupo 2, mais o campeão e vice da Divisão Especial, passaram a disputar a Série A-2. Assim como nos anos passados, a divisão de grupos no Paulista de 1993 se deu pela classificação da temporada anterior.
Para Paulo Vinícius Coelho, todos movimentos calculados por Eduardo José Farah, que buscava uma forma de enxugar a primeira divisão paulista de forma a causar o menor estardalhaço possível – sob o temor de perder votos em eleições da FPF.
– O Farah queria dar o golpe, mas não queria dar o golpe em 1991. Qual era o golpe? Ele assumiu o Campeonato Paulista inchado, em 1988, o primeiro ano dele. O regulamento de 1990 é precursor do golpe. Ele preparou a cisão, que ele fez em 1994, dizendo: “Olha, é tudo primeira divisão, mas esses 16 aqui não jogam mais, não têm mais chance de ser campeão paulista”. Virou Série A-2 – explicou o comentarista.
Kfouri concorda que houve um golpe, mas diferente:
– No caso, ali, acho que o Farah temia muito isso: se cair um grande, vai ficar difícil sustentar esse troço. E ele deu um golpe para o São Paulo ficar – afirmou ele, para quem o temor do cartola era, na verdade, ver o Paulista perder valor.
Alguém subiu em 1990?
Quatro equipes da Divisão Especial ascenderam em 1990: o campeão Olímpia, mais Rio Branco, de Americana, Marília e Sãocarlense.
Em dezembro de 1990, o Rio Branco celebrou o resultado como um momento histórico, o de seu primeiro acesso à primeira divisão paulista. Assim foi tratado no principal jornal da cidade, O Liberal.
Jornal de Americana celebra o acesso do Rio Branco à primeira divisão de São Paulo — Foto: Reprodução
O time empatou com o Olímpia, fora de casa, e garantiu o acesso. Para permitir a festa com torcedores, a diretoria fez com que o time dormisse em Limeira, cidade vizinha, para que pudesse chegar a Americana na manhã de domingo, onde foi recebido com carreata e por centenas de pessoas.
Em 1991, o Rio Branco esteve no mesmo grupo do São Paulo e perdeu as duas vezes por 1 a 0.
Alguém caiu?
Se houve festa em Americana, em Sorocaba, pelo menos, houve decepção em 1990. O São Bento foi o terceiro colocado no Grupo 2 da repescagem e não avançou para a quarta fase.
O jornal Cruzeiro do Sul publicou, em 24 de junho de 1990: “Fora da 4ª fase, Azulão cai para a Serie B em 91”.
“Com isso, o São Bento não enfrentará em 1991 os times grandes, à exceção do São Paulo”, diz o texto, que depois cita que a fórmula do torneio do ano seguinte ainda não foi definida, dando duas hipóteses:
“O sistema de disputa ainda não está totalmente definido pela FPF, mas sabe-se que nas duas primeiras fases do Paulistão de 1991 os times da Série A não deverão enfrentar os times da B. Isso poderá acontecer na 4ª fase, se o Conselho Arbitral determinar. Caso contrário, apenas os quatro melhores times da Série B terão direito de voltar à Série A em 1992”.
Em 1991, o São Bento fez má campanha e foi rebaixado para a Divisão Especial. Perdeu uma e empatou outra com o São Paulo.
O São Paulo foi beneficiado em 1991?
Como previsto no regulamento, o São Paulo jogou o Campeonato Paulista de 1991 no grupo com os piores classificados em 1990, no que foi rebatizado de grupo Amarelo.
O regulamento daquele ano era diferente do anterior, mais simples. Eram, de fato, 14 equipes por grupo, os melhores de 1990 no grupo Verde.
As equipes jogaram em turno e returno apenas dentro de seus grupos. A segunda fase teve os cinco melhores do grupo Verde e os três melhores do grupo Amarelo.
A possibilidade de que houvesse cruzamento entre os dois grupos foi admitida pelo presidente da FPF, Eduardo José Farah, à Folha em 29 de junho de 1990, pouco mais de uma semana depois da última partida do São Paulo.
Ao jornal ele disse que “seria inconstitucional criar uma subdivisão na primeira divisão”. Referia-se a uma a norma do Conselho Nacional de Desportos que limitava a no máximo três as divisões estaduais. São Paulo, à época, já tinha quatro: a primeira, a especial, a segunda e a terceira, nesta ordem.
O São Paulo, reconstruído com Telê Santana e recém-campeão brasileiro – venceu o Bragantino na final, no primeiro semestre – passeou na primeira fase. Num grupo mais fraco, venceu 17 partidas, empatou oito e só foi derrotado pela Inter de Limeira no returno.
Na segunda fase, o time do Morumbi caiu no mesmo grupo de Palmeiras, Guarani e Botafogo. Após seis jogos, fez os mesmos nove pontos do Palmeiras, mas avançou à final por ter feito melhor campanha na fase anterior.
– Você tem todas aquelas coisas que eram típicas do futebol brasileiro, de um time que jogou um módulo muito mais fácil ir com vantagem do desempate contra os que jogaram um módulo muito mais difícil. Uma série de absurdos – criticou Kfouri.
– Era um regulamento imbecil, mas fato é que todos os 28 times assinaram o regulamento antes de que o campeonato começar – comentou Giesbrecht.
Na decisão, contra o Corinthians, o São Paulo venceu por 3 a 0 o jogo de ida, com três gols de Raí, e segurou o empate sem gols na volta para conquistar o Paulista de 1991.
Dali, o São Paulo partiu para vencer a Libertadores e o Mundial duas vezes cada nos dois anos seguintes, além do Paulista de 1992.