Futebol feminino ganha chuteira desenvolvida para o formato dos pés das mulheres
Na busca por mais igualdade de condições e profissionalismo, o futebol feminino tem uma nova opção de equipamento esportivo que promete dar mais conforto às jogadoras. Uma empresa australiana lançou este ano uma chuteira desenvolvida exclusivamente para se adequar às características dos pés das mulheres.
A chuteira foi projetada levando em consideração a anatomia do pé feminino, que tem características próprias como calcanhar mais fino; arco do pé mais alto; relação comprimento/largura diferente na região dos dedos; e tamanho geral menor, em média, em comparação com os pés masculinos. Há ainda diferenças relacionadas à estrutura do corpo da mulher, como a bacia mais larga, que altera a pisada e os pontos de pressão dos pés.
– O que fizemos foi redesenhar a chuteira, levando em conta essas diferenças. Criar uma chuteira desenvolvida especificamente para as mulheres ajuda a corrigir um pouco o desequilíbrio em termos de equipamentos esportivos – afirmou a britânica Laura Youngson, uma das sócias da Ida Sports, fabricante da chuteira.
Para adaptar a chuteira para as jogadoras, a empresa criou um novo padrão que atende às características dos pés femininos, afinando a área do calcanhar, alargando a parte da frente e reforçando o apoio no meio da chuteira, incluindo o uso de uma palmilha mais acolchoada, para compensar a altura do arco do pé.
– É algo pequeno criar apenas uma chuteira para as mulheres, mas é um passo no caminho de uma maior paridade de gênero no futebol – completou Laura.
Para a veterana lateral-esquerda Rosana, do Palmeiras, a novidade representa um avanço para as jogadoras.
– Eu acho que, como qualquer outro vestuário, que tem diferença do masculino para o feminino, a chuteira deveria ser assim também, para poder virar um calçado mais confortável – observou a ex-lateral da seleção brasileira, com passagens por clubes como Lyon, Paris Saint-Germain e North Carolina Courage.
Bolhas no pé e dedos apertados
O ortopedista André Pedrinelli, diretor do Centro Médico da Fifa em São Paulo, destaca a importância de um calçado adequado para atletas de alto rendimento.
– O pé da mulher tem a mesma estrutura do homem em número de ossos, mas existem diferenças na proporcionalidade e na função. Uma chuteira adequada ao pé feminino faz diferença, com certeza, porque isso implica no controle maior da bola – disse.
A criação da chuteira feminina surgiu, segundo Laura Youngson, a partir de queixas de jogadoras profissionais, como bolhas no calcanhar e dedos muito apertados. Além disso, nem todos os modelos de elite no mercado têm números mais baixos, característica comum entre as mulheres.
– Se a chuteira deixa o calcanhar mais solto, isso pode causar bolhas e queimaduras leves, devido ao atrito e a fricção do pé com a chuteira. Por outro lado, uma chuteira mais apertada na frente aumenta o risco de deformidades nos dedos, como joanetes e dedos em garra. No fim, os dois casos causam dor e incômodo – afirmou o ortopedista Tiago Doyle, especialista em pé e tornozelo.
Com 23 anos de carreira, Rosana conhece esses problemas, alguns por experiência própria e outros por reclamações de colegas.
– Atletas profissionais de clubes de ponta não conseguem ter o material adequado, por causa da numeração. Como eu calço 37, não tive muito problema com isso, mas as meninas que calçam 35 reclamam bastante. Ainda assim, eu já tive bolhas no calcanhar, e já tive chuteira que me apertava tanto o dedinho que criou até um machucado no local – contou a jogadora, de 37 anos.
Zagueira do Famalicão, de Portugal, Gi Santos se considera sortuda, por ter o formato do pé mais adaptado às chuteiras atuais, mas também vê com bons olhos a chegada de um modelo feminino.
– Eu tive um pouco de sorte, pois os modelos desenvolvidos no masculino para atletas com os pés mais finos e não tão grandes como a média dos homens encaixam muito bem no meu pé e isso me ajuda. Porém, muitas das minhas companheiras de profissão não tiveram a mesma sorte. Algumas desenvolveram esporão, joanete e calos intermináveis, mesmo usando mais meias e todos os recursos possíveis para tentar moldar o calçado ao pé – detalhou.
Opções no mercado não têm alterações estruturais
A jogadora australiana Kat Goff, do South Melbourne, foi uma das primeiras atletas profissionais a assinar contrato com a Ida Sports e usar a chuteira feminina nos campos.
– Ter um calcanhar mais fino faz uma grande diferença para a maioria das jogadoras, que sentem como se estivessem escorregando na chuteira. Para mim, houve impacto na mudança de direção, aceleração e desaceleração – disse Kat.
– A biqueira mais larga é também animadora, porque eu sentia que meus mindinhos estavam sempre esmagados, o que é extremamente desconfortável – observou.
A lateral-direita Sammy Quayle, da seleção do País de Gales, também adotou a chuteira feminina.
– Esse calçado é um passo adiante na busca por igualdade no futebol. Nunca tinha tido um par de chuteiras que se encaixasse perfeitamente e fosse tão confortável já no primeiro uso – comentou Sammy, que joga no Lewes, da segunda divisão inglesa.
De acordo com uma pesquisa feita em 2019 pela Fifa, com informações repassadas por todas as federações nacionais afiliadas, existem 13,6 milhões de jogadoras praticando futebol com algum nível de organização no mundo, sendo 3,1 milhões abaixo dos 18 anos.
Nas últimas duas décadas, algumas das principais empresas de material esportivo do mundo começaram a dar mais atenção ao futebol feminino, lançando modelos mais leves, com pequenas variações de conforto, como a distribuição das travas, detalhes estéticos e mais opções de numeração, embora sem as alterações de impacto na estrutura de fabricação que caracteriza a chuteira da Ida Sports.
Em 1999, ano da Copa do Mundo Feminina nos Estados Unidos, a Nike lançou a Women's Air Zoom M9, primeiro modelo da empresa oferecido ao público feminino. Segundo a assessoria de imprensa da marca, após estudos e pesquisas feitas com jogadoras, que reivindicavam um tratamento igual do dado ao futebol masculino, a empresa decidiu “desenvolver produtos em modelagem unissex e estender a grade de tamanhos para numerações menores em versões para adultos”.
A Adidas, que tem opções como a EQT Predator Maneeta Liga e a X 19.1 em seu catálogo feminino, informou, também via assessoria, que “após pesquisa feita com jogadoras nos EUA, ampliou a numeração dos seus principais modelos de chuteiras para atender à demanda do futebol feminino”.
Ano passado, a Puma lançou antes da Copa do Mundo da França a chuteira One 5.1 Trailblazer. Segundo a empresa, o calçado foi adaptado “especialmente na curvatura interna mais acentuada”. Essa versão modificada chegou ao mercado apenas como uma edição especial, mas não entrou em linha de produção permanente. De acordo com a assessoria, a Puma pretende trabalhar nessa nova tecnologia para ampliar sua grade de chuteiras unissex.
Uma jogadora de um grande clube da primeira divisão do futebol brasileiro, que pediu anonimato, contou que hoje, patrocinada por uma das principais fabricantes de material esportivo do mundo, tem a oportunidade de testar o modelo de chuteira masculina que melhor se adequa aos seus pés, mas até atingir esse estágio viveu o drama comum à maioria das atletas.
– No inicio eu sofria muito com isso. Mas muito mesmo. Os pés das mulheres são mais sensíveis e frágeis em relação aos dos homens. Comigo não era diferente, era difícil conviver com bolhas e calos – observou.
Ela espera que mais empresas apostem na produção de chuteiras exclusivas para as mulheres.
– Eu acho super válido, nós merecemos e espero que sirva de motivação para mais marcas do segmento. A modalidade merece, o público merece um futebol de nível elevado, e nossos materiais de trabalho precisam acompanhar essas evoluções tecnológicas.