“Tio Zózimo: Sururu & bafafá”
Gente, nem vou contar o rolo que deu. O sobrinho do Seo Neca da Farmácia Harmonia, chegado há pouco do Rio. Linho Branco. Sapatos pretos. Desconhecia os costumes rígidos da cidade. Proferiu uma palavra. Nem nós sabíamos que era proibida.
A gente desconhece onde foi, quando aconteceu. Mas no frigir das gemas, designoramos ele. No ultraje da hora, referiu-se à moça, filha do dono da padaria. Seo Juão. Ela é uma moça obstinada.
Na hora mesma em que a palavra obstinada foi pronunciada, uma faca, gelada, cortante, aluminosa, cortou a cidade de fora a fora. De parte a parte. Um bafafá. Pra não servir de testemunha Tio Zózimo caiu no mato. Sete dias escondido na capoeira.
Onde já se viu é pouco para traduzir a comoção geral. Uma moça tão da cidade atingida com esta palavra. Ainda hoje tenho medo de repetir.
Senhoras em pequenas reuniões nos fundos do quintais. Aquelezinho nunca me enganou. Quem diria, sobrinho da Dona Abgail. Imagine a vergonha que ela está agora.
Fogo morro acima, chuva serra baixo. O assunto. O desrespeito com a filha da cidade. O mal ao quadrado. A mil. Clamor. Rumores de justiça.
Até uma pedra, meio tijolo atiraram, depois da meia, à janela do quarto dele. Tio Zózimo, olho aberto, outro piscando. Nem pio ou assovio.
No fogo da emoção, a cada dia, mais um galão de gasolina. Rui Drigue subiu na capota do jipe e conclamou a todos. Cerquemos a rodoviária para o moço não fugir. O débito dele com a cidade é alto, minha gente.
Dona Eudrosínia marcou reuniões em várias quadras. Não podemos deixar o assunto descongelar. Nossa cidade ultrajada. Honra por lavar. A maioria gostava de ouvir de olhos estalados. Sem nada entender, sem nada querer fazer. Só uma diversãozinha muda. Teatro. Circo de ciganos. Kle Mente exigia uma passeata. Cada um leva sua cartolina.
Tião Sébas, sempre campeando um momento de protagonizar, não deixou barato. Eu mesmo, se vocês autorizarem, vou lá buscar o rapazinho mal-educado, pelos colarinhos. Rivais torceram os narizes. Malabaristas da fama. Grupos vingadores. Fogo na caixa d`água.
Estava neste vai-não-vai, um empurra-empurra. Quando o Capitão Onça chegou no seu cavalinho cor de porco. De longe já perguntou o motivo de tanta confusão. Ajeitando a corda que usava como cinto na barriga. Nas calças de brim azul.
Cientificado do motivo do sururu, Onça foi pondo a mão na ferida. Alguém aqui pode me dizer, me traduzir, me explicar o significado da tal palavra? Obus tinada, o butinada, obtisnada, seja lá qual for a pronúncia pronunciada registrada em cartório.
Silêncio. Constrangimento. Um braço se ergueu. Era Dona Ger Trudes. Saber eu não sei, mas desconfio. Mesmo confessando sua ignorância, ganhou uma salva de palmas raivosas.
Capitão Onça, mascando uma haste de capim amargoso, sem tirar o olho do seu cavalinho marchador, cara queimada pelo vento de abril, tomou tento. Foi dizendo. Legalmente, só se pode fazer alguma coisa baseada na verdade da tal palavra e para isso precisamos de alguém que conheça o cunho vernáculo deste polissílabo. Falou autoritário baseando-se nas lições da Cartilha Caminho Suave. Lembrou-se Dona Neide, sua primeira professora.
Entusiasmado com tal linguajar tão imponente, Lu Quinha opinou, meio gaguejando. Melhor falar com o Diretor do Ginásio. Firme qual prego na rapadura.
Partiram. Foram Em grupo. Em bando. Ao longe luzinhas se apagavam. As casas estavam indo dormir. Janelas sonolentas. Meia noite quando chegaram à casa do diretor que saiu, ao portão, segurando uma lamparina. De pantufas e pijama listrado comprado do mascate Mideus. Um árabe nascido em Araraquara.
O tal qual diretor pego de surpresa, pois na quarta-feira era dia de namorar, mesmo assim não decepcionou a plateia. E mesmo antes do cavalinho descansar, já foi respondendo que obstinada é uma pessoa à frente, que não é Maria-vai-com-as-outras, isto é, se é obstinada não muda facilmente de opinião com qualquer vento ou desilusão.
Seo Onça empertigou-se nos arreios e nos relhos. Estão vendo só. A palavra é até um elogio pra moça. Tomara mesmo vocês fossem obstinados em aprender uma palavra nova a cada dia, aí, sim, iam acertar todos os exercícios de palavras cruzadas do Almanaque Biotônico.
Dona Ger Trude ficou foi muito decepcionada com a palavra. Rui Drigues, que já contava com a alma do moço queimando nas chamas do purgatório, ficou foi borocoxô. Tião Sébas cortou amizade com o Onça. Pra sempre, pra jamais.
Tio Zózimo, farto de tanto diz-que-diz-que retornou pra cidade, nem perguntou nada sobre o caso, só estranhou quando chegou, no trem da Maria Fumaça, uma caixa com duzentos dicionários. Todos já estavam encomendados.