Climão de final de ano
João Juvêncio estava com a pulga atrás da orelha. Chegando o final do ano. Os convidados costumavam aprontar alguma. E seu Anuir sempre se sacrificava para resolver as confusões. Todas vezes, acabava sobrando pra ele. Críticas, feridas, frustrações. Vai que repete novamente e o coração dele não resiste?
O médico tinha avisado. Já não tem mais idade pra isso. Uma hora o senhor pode deixar a gente. Para sempre. João pensou, sozinho, nestas recomendações médicas. Na moita. Sofrendo antecipado.
O caso é que Seo Anuir não deixava a peteca cair. Mais que uma rima, era uma realidade. Não se sabe de onde lhe havia nascido tal técnica conciliadora nem como a desenvolvera com tanta destreza e habilidade.
Pintasse climão ou desavença, ele desbaratava a confusão em minutos. Diplomata ao extremo. Não gostava de ver a maionese desandar. Segurava a situação a unha. Matava a fera da desavença com um tapa. Domava o bicho da discórdia num estalo de dedo.
Todos da família ou da empresa ou do time de futebol sabiam ao menos de uma das histórias passadas nas quais Seo Anuir tinha conseguido botar panos quentes na fervura. Acalmar briga de família. Disputa de tiros no estádio. Desarmar barraco entre chefes e subordinados era com ele mesmo.
Esta era a preocupação de João Juvêncio. Seo Anuir botava o bedelho, entrava no meio sem ser chamado. Vai que uma hora leve uma invertida, né. Já tinha gente prometendo. A bomba do peito falha. Adeus, Seo Anuir. Seria muito triste.
A esta atividade apaziguadora ele se dedicava 48 horas por dia, não por satisfação pessoal. Ele a tinha como um castigo do destino. Um culpa a ser expiada. Bastava estar perto da mínima discussão. Pronto. Já se sentia responsável pela manutenção da ordem do mundo. Tinha porque tinha de resolver.
Não admitia. Se envolvia. Metia o nariz, nem chamado era. Depois se sentia exausto. Acabado. Precisando sempre de um copo de coalhada para se recuperar. Lentamente. Sozinho num canto.
Tanto que a família ou o pessoal já nem se importava com as contendas próximas ou distantes. Sem que ninguém chamasse, Seo Anuir, tal qual um herói, surgia do nada. De capa. Voando para jogar açúcar no caso. Solitude sob o sol ou luar.
Só que com o tempo escorrendo entre os dedos, Seo Anuir, o temporizador, avaliou que não recebia o merecido reconhecimento pelas suas artísticas intervenções em nome da paz. Sou sempre deixado de lado. Enquanto muitos brigões ou causadores são paparicados por quase todos. Zangou-se.
Não prometia vingança que isso não leva a nada, só matutava serenas serenatas. Sem rancor.
E o final de ano chegou com a tradicional reunião familiar. O grupo de zap convocou todo mundo. Discutiu o menu. Dividiu as despesas. Multiplicou as manifestações de saudades.
O dia da festa. João Juvêncio já acordou de cabelo em pé. Tava de olho em Seo Anuir fazia dias. Está estranho este meu tio, pensava enquanto o espiava de banda. Tenho de cuidar dele neste final de ano.
Metade dos parentes não havia mandado a grana combinada. Acusações sem asas começaram a voar. Indiretas certeiras. Clima esquentando. Seo Anuir se segurando. Se controlando. Nem um pio ou assovio. João assistia a tudo de olhar carregado. Daqui a pouco ele se intromete. Preocupava-se. Tinha até separado o telefone do SAMU.
O povo aguardando. Mas, Seo Anuir mordendo a própria língua, se manteve neutro. Calado. Jacaré entrou na briga? Nem ele. Quem teve de sacar o cartão de crédito foi Juarez, costumeiro brigão, casado, agora. Que disse bem alto, não vão se acostumando, não, hein. Cambada. Aquela palavra, cambada, traiu Juarez para sempre. Revelando o ódio que ele trazia escondido no peito, atrás de fachada de simpático.
Tio Agnelo não gostou da indireta. Pôs a metade da família no Fusca e voltou para a cidade dele. Tia Cleide ameaçou chorar. Não é preciso brigar, gente. A contenda teve início, ameaçou-se inflamar, mas, com o barulho do fusca do Tio Agnelo retornando, foi se apagando, se apagando, sozinho. Um copo d’água acalmou João. Não por muito tempo.
Resolvida a questão econômica, partiram para a gastronomia. Tio Pedro, caminhoneiro que sempre tinha dirigido a churrasqueira, ficou pê da vida porque o Fonseca, namorido da Santina, já tinha se aboletado entre os espetos e estava preparando o carvão.
Se pegaram os dois, ameaças de socos e pontapés. Um cachorro não entendeu nada. Rasgou as canelas das calças dos dois. Mulheres começaram a chorar. Anuir assistia a tudo com um olhar de peixe morto. João, desconfiado. Eita que vai dar trabalho dobrado. Hora que Seo Anuir resolver rodar a baiana nem meia dúzia de cunhados vai segurá-lo. Aí é que é o perigo de um baque fatal.
Não bastasse a Santina, chegaram mais três ex- cunhadas com novos enrabichados. Dona Clementina, a matriarca, nem ligava. Mas, Seo Cesário, o pai-velho, queria morrer. Não quis cumprimentar os guapos. Pra quê? Começou um empura-empurra-guaçu. Um banco de madeira, ao cair, raspou nas varizes da vó. Enquanto a acudiam, já vinham chegando uns pedacinhos de calabresa, pena assados. A briga cessou devagarinho, sob o sabor da linguiça. . Como um toco de vela.
João preferia a terceira guerra mundial. Se seo Anuir entrar agora na parada, não vai sobrar pedra sobre tijolo, nem manga espada pra contar a história. Será que os enfermeiros fazem plantão hoje?
Porém. Seo Anuir calado. A irritação dele era de outra ordem. Ninguém dizia cadê o Anuir pra resolver estas questões? Ora, que negócio é este das desavenças irem se resolvendo sozinhas? João não viu, mas, Seo Anuir foi se encolhendo a um plano mais apagado, sumindo dentro do terno cinza. Desaparecendo. Recebendo no pratinho de papel a carne assada, a maionese, o copo de refrigerante. Tal qual um convidado qualquer.
Da metade pra frente da festa, parece que deu um estalo na família. Coisas e situações que eram para brigas, ninguém mais punha atenção nelas. Era melhor não ver. Como foi o caso da sobrinha que foi ao som, ao rádio, ao aparelho e, sem pedir a ninguém, substituiu a antiga moda sertaneja que sempre dominava as reuniões. Pôs no lugar uma seleção de funks. Só João temeu. Tremeu. Nunca é tarde para uma confusão nesta casa.
Seo Anuir até torceu, mas, nada. Nem um tico de confusão.
Todo mundo pianinho. Só no sapatinho. Situação resolvida no silêncio. Assim, foi até o final da reunião. Mesmo quando o Chevette alugado pelo Silveira não quis pegar na partida engarrafando o trânsito. Nenhuma piada. Nenhuma censura. Todos foram ajudar no tranco. De repente, deu um troço no Seo anuir. Caiu tremendo. Precisaram inventar uma briga para ele intervir. Daí, sobreviveu
Donizeti Donha
Professor da rede estadua de ensino