O Tiroteio e a Garrafinha de Guaraná
Senhor João Juvêncio! A voz do diretor da escola ecoou porta da sala adentro. Eu que já era pequeno, me diminuí ainda mais na carteira. Então, o senhor está com o uniforme todo sujo de lama. É assim que sua mãe te ensina? Duvido.
Todos os olhos da turma caíram sobre mim. E todos sabiam que eu havia sido empurrado no caminho, dentro de uma poça d’água da chuva que caíra pela manhã. Por um aluno da Preparação para Admissão. Grandão. Óculos fundo de garrafa. Fazia tempo que ele vinha tentando alguma coisa contra mim
E agora, conto ou não conto? Havia uma lei entre os alunos. Não se podia alcaguetar. Tranquei os dentes. Aguentei calado a tempestade de broncas. Quanto mais calado eu ficava, mais o diretor trovoava. Raios, relâmpagos e coriscos. Todo mundo viu que não abri a boca.
Durante o recreio foi aquele ohhh. Até os mais populares e disputados meninos e meninas vieram conversar. Aplaudir. Curti aquela sensação boa por toda a tarde. Mesmo com o uniforme manchado de terra. E todo o resto do ano.
O papel social do Fundo de Garrafa foi diminuindo , perdendo as companhias . Acho que até mudou de escola.
Penso que foi assim que me percebi como gente, passei a ser muito feliz na nossa cidade. Meu pai, Seo Orlando, era produtor rural. Toda tarde trazia uma flor para minha mãe.
Ela, sempre empolgada, mandava vir, no final do mês, a moça das Casas Buri para fazer as compras de tecido. Costurava, em sua máquina Vigorelli, roupas para todos nós. E, mandava uma lista para a Casa Liberal, encomendando os gêneros alimentícios.
Daí vocês já percebem, eu estava sendo criado sem nenhuma preocupação, num lar tranquilo, posso até garantir feliz.
Eu só tinha que festar e estudar. Dona Isaura, minha mãe, queria porque queria que eu fosse ao menos advogado.
Talvez já estivesse aí pelo segundo ano de estudos, na Escola de Aplicação. Uma tarde. Todos os alunos chegaram bem antes do sinal da entrada. O jogo de futebol com uma bola bem pequena era só o aperitivo.
Naquela data, a sirene demorou mais ou nem sequer tocou. Eu na ânsia de aproveitar até a última gota, tinha tirado um dos pés do sapato e tava jogando feito um Garrincha das pernas tortas. Era meu truque antigo para driblar e enganar os zagueiros grandões. Um pé calçado, outro descalço me davam uma ginga difícil de me marcarem.
Enquanto a bola corria e a molecada suava em biscas, as notícias chegavam truncadas. Não vai ter aulas. Podem ir embora. Vai ter passeata pedindo ouro às famílias. Todos para casa, gritou a tia zeladora, amarrotando o avental.
O pátio se transformou numa zoeira comemorativa. Só sei que acabei sozinho. Fui procurar meu pé do sapato. Nada. Na fuzarca devem ter chutado, carregado, escondido, que a molecada era muito capeta.
Todos os amigos sumiram, na maior pressa. Naquela algazarra, alguém acertou uma sapatada na lâmpada da entrada. Quando a zeladora olhou, quem estava sem um dos pés do sapato? Ela só olhou para mim e disse: rapazinho, você já está muito marcado na escola. Chispa já daqui. Senão te levo para a sala do diretor.
Neste momento, todos, todos tinham zarpado, sumido, desaparecido. Melhor pra mim, pensei, esfregando uma nota de dez cruzeiros. Passo no Bar do Seu Romão. Mato a sede. Eu gostava muito do Guaraná Xandu. Economizava durante dias, cédula a cédula. Caso contrário, só no Natal. Furava a tampinha. A garrafinha durava quase a tarde inteira.
Solitário, entrei correndo, espavorido, no Bar. Pelo corredor lateral. Para me extraviar ainda mais dos amigos, me livrar, caso algum estivesse ainda pelas redondezas.
Seo Romão, ao me ver, na porta lateral, assustou-se. Vi que ele , apavorado, empurrou alguém. Deu tempo, ele percebeu. Eu divisei um vulto feminino esgueirando-se para os fundos do estabelecimento.
Desde este dia, não precisei mais pagar pelos guaranás. Ele não aceitava receber minhas moedas. Queria comprar meu silêncio? Só fui pensar sobre isso bem depois. Numa tarde triste.
Na época, achava estranho ele não querer receber. Mesmo assim, eu só pedia o guaraná quando tinha dinheiro, uma vez por mês. Mas, sempre, Seo Romão batia o pé, não recebia.
Seis meses. Sete meses. Já iam chegando os exames finais escolares. Já tínhamos percorrido todo o livro de leituras. Cheguei em casa, depois da aula, com aquela vontade de engolir um pedaço bom de bolo de fubá e uma caneca de café e sair correndo para jogar futebol que a turma já estava lá no campinho.
Não foi possível. Me assustei. Meu pai em casa neste horário? Ele nunca. Sentado à mesa, com as mãos na cabeça. Minha mãe, executando as tarefas, com gestos exagerados, como se respondesse a alguma acusação. Que será que foi que eu aprontei agora?
– É verdade que seo Romão não tem lhe cobrado os guaranás, que você tem bebido após as aulas? Um balde de gelo caiu sobre mim. Senti-me o pecador que a freira do catecismo exemplificava, em cada uma das lições.
–Não minta, ordenou meu pai.
A casa paralisada. A atmosfera do lar esperava, aguardava, ansiava por minha resposta. Nem precisei confirmar, meu rosto, minhas pernas, meu coração me denunciavam.
Eu não sabia. Um funcionário do Banco da Província tinha alcaguetado ao meu pai. Melhor, acusado. Eu estaria sendo presenteado com guaranás, prova de que havia uma romance clandestino, aí. A face desconsolada de meu pai me dizia. Ele se sentia obrigado a concordar com o funcionário do Banco. Chutou o pé da cadeira.
Gente, minha santa mãezinha sendo acusada por minha causa…
Por mais que minha mãe desviasse os olhos, percebi-os, roxos. Ela, proibida de falar. Se defender? Meu pai voltou à posição inicial. Com a cabeça baixa, enfiada entre as mãos. Demorou pouco, saiu jurando vingança.
Talvez levasse consigo um revólver. O tiro ecoou. Seo Romão do Bar não teve tempo de se defender. Meu pai chegou em casa assustadíssimo. Se refugiou no pequeno escritório.
No outro dia pegaram o criminoso. O marido traído. O funcionário do Banco. Aquele mesmo que me acusara. Pego fugindo num ônibus do Garcia.
Minha mãe demorou muito tempo para perder as olheiras. Meu pai retornava diariamente, sempre envergonhado para casa, após os trabalhos. Trazia a rosa, mas não tinha coragem de entregá-la.
Foram longos os poucos meses que faltavam para terminar o ano. Por um bom tempo, tudo o que havia de doce na minha infância tinha se acabado, menos o sabor do guaraná. Que eu tive de procurar em outro bar. Na avenida.