O cavalinho da história e a história do cavalinho
Penacho ficava ali pelo terreiro. Cabresto, corda ou rédea? Nada. Solto. Aguardando as tarefas. As brincadeiras vinham antes e depois. Da molecada do sítio, amigo.
Carroça devidamente carregada com legumes, verduras, leite e queijo, tomava o rumo. Da Estrada Caitu para o centro da cidade. Era uma jornada. O humano parava em cada venda. Um dedo de prosa. Às vezes, um copo d´água. Sem demora. De vez em quando se assustava com um “Bom dia, compadre. Como vai a família?” Só aí via que uma outra carroça já e vinha voltando do trecho.
Por viver tão absorvido em seus pensamentos, seus donos humanos até pensaram em vendê-lo. Tanto que quase o trocaram por um pangaré pintado de marrom por um cigano do circo Ringo Brothers Limited.
Revolta de meninos e meninas. Choros e palavrõezinhos. Resolveram dar um tempo. E não é que Penacho começou a dar conta do recado. Mas, preferindo sempre ficar de banda, nas tropas. Nos tropéis, ia nos últimos lugares, só na chegada é que ia pra frente. Ultrapassava brincando.
No seu mundo de fantasia, nem reparava que estava livre, comia sua ração no Moinho Santo Antônio, imaginando verdes pastos cheios de crianças a procurar rios para nadar. Assoviava em silêncio na volta, enquanto seu humano dono vinha com a cabeça quente fazendo os cálculos dos lucros. Vendas da mamona, do feijão e do café.
Na metade da colheita do café, indo para a cidade, foi na altura da Venda do Deny, que Penacho ouviu de rabo de ouvido que haveria festa numa capela, lá do outro lado da cidade. Chamada Bom Jesus. No domingo seguinte. E que lá ia ter um concurso. O cavalo mais bonito seria pintado pela artista plástica Naninha.
Penacho ficou pensando. Já ouvi este nome antes? Naninha, como teria a conhecido? Alguma das meninas que moravam ou passeavam no sítio? Qual conexão existe com este nome, foi pensando, em seu trote , até a cidade.
Nem pensou em participar do concurso. Onde já se viu? Sempre de lado. Nunca protagonista. Não ia se meter a besta. Durante a semana até se esqueceu do tal concurso e da tal festa.
Só no sábado , à noitinha, após galopar com todas as crianças pelo pasto verdejante, voltas na represa, é que seu dono começou a dar pistas. Escovou Penacho longamente. Buscou uma cela antiga, cravejada de rebites luminosos, bem desenhada. Rédeas coloridas. Esporas douradas.
E foi assim que Penacho chegou ao Bom Jesus. Seu dono já sabia que ele queria um lugar tranquilo, deixou-o atrás da Venda do Vico, no meio de um sítio cheio de pés de café.
A comunidade já estava em festa. Moças e rapazes andando em torno da capela. A venda cheia de cavaleiros. A voz do leiloeiro dava-lhe uma, duas e três. A leitoa vai para o cavalheiro de chapéu mexicano. E todos batiam palmas.
O alto falante oferecia músicas para os namorados. Hermegildo oferece a música Coração de vidro para a moça de vestido azul. Alguém de blusa amarela manda este modão bonito para o rapaz do chapéu branco.
No final da canção, o locutor anunciou: Já está na Capela Bom Jesus a pintora mais conhecida do Paraná. Naninha. Ela quem vai escolher o melhor cavalo para fazer o quadro da festa deste ano.
Todos os anos a competição era grande. Proprietários de cavalos se engalfinhavam. A vaidade de ser o dono do vencedor. Principalmente o coronel Felipe Pujimó e o fazendeiro Exímio Ribeitino. Os dois se revezavam, fazia anos. Um ganhava. No ano segunte, o outro. Mas todos os cavalos participavam contentes aguardando um milagre.
Era a primeira vez que Naninha visitava uma festa de capela. Encantou-se com as gentilezas das famílias, com a diversidade das brincadeiras, com o gosto bom do churrasco. Com o burburinho das conversas. No momento em que ia dar uma olhadinha na barraca da maçã do amor, notou um leve toque em seu ombro.
Um rapaz alto e vestido à risca, moda sitiante, foi lhe dizendo sem rodeios aqui é costume ganhar nosso cavalo, o Cavalo dos Pujimó. Te garanto mil e quinhentos contos. Para você comprar um vestido novo.
Naninha nem ficou assustada,, nem deu bola. Continuou sua caminhada pela festa. Já estava na barraca das cocadas. Outro rapagão. Também na crista da moda dos sítios, se dirigiu a ela. Você tá chegando agora, mocinha, pode até ter uma boa carreira na pintura se obedecer ao nosso jogo. Tá vendo aquele cavalo, no pé da paineira. É o cavalo dos Ribeitino. Acho que é ele que você deve escolher, se tiver juízo. Dois mil contos na sua conta.
Uma pontinha de medo e outra de vaidade tentaram dominá-la. Era hora de ir repassando os cavalos. Todos muito bonitos. Celas raras. Rédeas ricas. Crinas lavadas em xampu de babosa austríaca colhida no sitio dos Knupp.
Viu que a tarefa era difícil. Como escolher o mais bonito? Conforme repassava os cavalos, se preocupava com o quadro que ia pintar. Todos tão lindos, como escolher?
Ao chegar ao último concorrente, viu que o cavalinho levantou as orelhas ao vê-la. Seus olhos brilharam. Sua crina eriçou-se. Onde conhecera tal cavalinho, perguntava Naninha, a pintora. De onde me lembro desta moça, coçou a cabeça o cavalinho Penacho.
Ficaram os dois se olhando. Tinham certeza de que nunca haviam se visto. Tinham certeza que se conheciam. Marcante.
Silêncio. A multidão esperava a decisão. Era costume nos anos passados que a pintora convidada para o evento, a fim de não se esquecer de nenhum detalhe, sentasse com sua tela bem em frente ao cavalo escolhido e ali pintasse o quadro do vencedor
Naninha não fez isso. Pegou sua tela e olhando em direção à capela foi pintando sem olhar para nenhum concorrente. As pessoas, em círculo, olhando. Não acreditavam. Como ela poderá pintar um cavalo sem olhar para ele?
Naninha não queria olhar. Queria inventar. E na sua invenção lembrou-se da sua casa na cidade, no final da rua. Nas noites quentes ou frias em que seu pai contava uma história. Sempre a mesma. Que ele tinha inventado para fazer Naninha ninar. Dormir.
Era a história de um cavalinho que saia lá do Caitu, sozinho, numa noite escura e se punha na estrada. Em direção à cidade, para lá dormir. E no caminho ia encontrando outros animais com a mesma vontade. E ele convidava um a um para subir em suas costas. O cabrito. O porco. O coelho. O cachorro. O gato. E iam seguindo ao pocotó-pocotó do cavalinho.
Era ao som deste pocotó-pocotó que Naninha adormecia. E nunca conseguia ouvir o final da história. Era o seu drama maior. Queria. Desejava saber o final. Uma noite, ela fez pique. Tinha dormido um pouco à tarde. Iria resistir ao sono. Até o final. Queria porque queria saber o que os animais iam fazer na cidade.
E foi assim, o cavalinho pegou todos os amigos, foi seguindo pela Estrada Caitu, avistou as luzes da cidade. E a história foi se apagando. A voz do seu pai foi sumindo. Nani esticou os ouvidos para ouvir melhor. Era tarde. Seu pai adormecera contando a historinha. Será que sempre ele adormecia? Duvida que morou para sempre em suas imaginações.
Foi recordando a historinha que seu pai contava que Nani completou a pintura de sua tela. O cavalinho da historinha era, sem tirar nem por, igualzinho ao cavalinho Penacho.
Quando a multidão viu o resultado ninguém acreditou.
Até hoje se perguntam de que forma a moça pintora tinha desenhado tão bem um cavalinho, com todos os detalhes, sem olhar para ele?