América: a primeira treta
Foi bem na semana em que o Urias ia estrear no time. Pouco tempo depois da invasão do campinho pela turma do Sadrak, Os integrantes do América, a cada jogo, a cada treino, ficavam de olho em pé. Sabiam que perigo rondava.
O campinho recuperado da destruição provocada pela turma rival. Estava lindo. Traves. Linhas das grandes áreas. Círculo central. Tudo. Era grande a expectativa da estreia do novo reforço. Tanto que até marcamos um jogo contra o time do Levildo. Equipe bem treinada. Famosa pelos resultados obtidos contra outros times da cidade. Ferroviarinho. Flamenguinho. Greminho. Todos tinham penado nos pés do time do Levildo. O Manchester, era assim que tinha sido batizado depois de uma série invicta de 7 jogos seguidos.
Era um dos últimos treinos antes do grande jogo e da aguardada estreia do Urias. Nem bem havia iniciado, um morador novo da rua, o senhor Feféu, com palavras ríspidas e gestos graves, chegou à beira do campinho. Fazendo sérias ameaças. Não quero mais jogos aqui. O terreno é meu. Vocês fazem muita bagunça e poeira. E tralalá e trololó. Tudo que tinha de falar e saiu pisando duro. Balançado os braços como se nadasse em um mar bravo.
Ninguém deu um pio. O treino continuou como se nada. Era preciso ajustar o esquema tático. Os posicionamentos. As jogadas ensaiadas. O foco era forte. Ninguém prestou atenção nas broncas do sr Feféu. Haveria mais dois treinamentos antes da grande partida. O Manchester provocava medo. A gente não queria ser o oitavo derrotado.
Quem estava mais preocupado com o senhor Feféu era o Urias. Afinal, tinha entrado no esquema de treinamentos do América fazia meses. Vinha obedecendo tim-tim por tim-tim as regras impostas. Rígidas.
Para ser aceito no América o jogador tinha que superar três provas . A primeira era sob o abacateiro frondoso que nascia nos fundos do Depósito Verim e fazia sombra num pequeno gramado. Ali, o trabalho consistia no trabalho de melhorar a comunicação. Tarefa comandada pelo Edimilson Uriel. Todos sentados em círculo. O atleta novato deveria contar uma história de assombração. De arrepiar. Não valia historinha da carochinha.
Segundo o Edmilson Uriel, nossos jogadores tinham que estar preparados para encarar o medo de frente. Quem se omitisse perdia a vaga no jogo da semana. Cada um caprichava o mais que podia.
Urias pesquisou por semanas uma história de terror. Bem terrível. Que se passava entre a Venda do Sapatão e a Farmácia Florasil. Foi tão terrível a história dele que por meses a gente evitava passar na frente da Venda do Sapatão após o pôr do sol.
Foi difícil ser aprovado, mesmo a história sendo horripilante. O Jamiro não gostou de uns detalhes. Queria reprovar. A salvação foi o Pirunga que votou a favor, defendendo que o Urias tinha inovado, trazendo uma história de terror que acontecia em nossa cidade.
Cumprida esta tarefa, o elenco, doze ou treze garotos de pé no chão, a maioria, subia orgulhosamente pela Rua Manoel Antunes Pereira. As meninas da vizinhança já sabiam da rotina. Mas, nenhum dos atletinhas tinha coragem de assoviar, enviar uma mensagem. Alguns se concentravam na ponta do Conga, tal era o respeito.
Tanto que as mães avisavam não mexam com as filhas dos outros. Não quero problema na vizinhança. E assim, foi sendo construída a história do América com as famílias daquele pedacinho da cidade. Respeito e presença.
A segunda prova que o Urias e todos tinham de enfrentar era no campinho propriamente dito. Conversa com a bola de capotão. Mostrar visão de jogo. Dribles e caneladas. Tabelinhas e algumas desavenças. Quando o soco ameaçava substituir o diálogo, era hora do Amaral entrar em cena. Com boas palavras e alguns empurrões acalmava os valentinhos. E bola que seguia. Urias superou esta prova também com muito esforço de sua parte.
Para encerrar, a terceira parte acontecia, corpos suados, gargantas secas, embaixo do poste da Copel. Em frente ao Barracão misterioso da esquina, abandonado. Cheio de lendas.
Mas, antes, palmas nas casas dos vizinhos pedindo água. Sempre surgia uma mãe com uma jarra, formato de abacaxi. E o líquido fresquinho limpava as gargantas sedentas. Vez ou outra, dia especial, a gente ganhava limonada, de frutos colhidos no fundo do quintal.
Devidamente hidratados, sentados no meio fio, agora o comando era do Akio. Que propunha a prova. Tentava mexer com o psicológico do atleta candidato. Quando será que poderemos jogar no campo do MEC? Quando será nossa primeira excursão pelos campos da cidade? Jogar contra o Greminho, contra o Olaria, contra o Flamenguinho, contra o Real Madri da Vila Esplanada? Eram questões que ele jogava para o novato. Novamente, Urias teve de se descobrar.
Puxa vida, comentava o Urias, depois de tantos esforços agora o senhor Feféu quer melar tudo? Logo quando eu ia estrear! Chutou uma pedra que atravessou a rua e bateu no portão da casa da frente. A revolta morando no olhar de cada moleque era de deixar a noite silenciosa.
Nos três treinos antes do jogo, Seu Feféu apareceu. Gesticulando forte. Cabelos espetados. Cada dia mais bravo. Mais intenso nas ameaças. Ia chamar a policia. A rádio. O homem do lobo. Ia esburacar o campo. Falar com a mãe de todo mundo.
Ninguém dava um pio. Urias temia cada dia mais não ter a estreia. A tão aguardada. Logo contra o poderoso Manchester. E seu Feféu enfurecido. Uma fera.
Até que chegou o grande dia. Desde manhã, cada um se preparando para o grande jogo. Urias já nem tinha mais esperança, porque na véspera seo Feféu falou que era a última vez que avisava. Que ousassem por novamente pisar no campinho para ver. Ia ser a pior viagem.
Naquele dia, a sessão do Abacateiro foi tensa. Todo mundo concentrado. Enfrentar e vencer o Manchester? Ser goleado? O paraíso e a decepção sem limites entre si.
Parece que seo Feféu aguardou, com o máximo de requinte de crueldade, para aparecer. Os dois times já estavam no campinho. Um de cada lado. Posicionados. Tinha até plateia. Vizinhos. Conhecidos. Um funcionário da prefeitura apareceu lá para ver o jogo.
Foi nesta cena que seu Feféu, bradando, gritando, braços erguidos para os céus, surgiu. Paletó subindo pela cintura de raiva. Sapatos tropeçando nas pedras de indignação. Decretou. Da forma mais decretada. Todos fora daqui. Já avisei. Quem manda aqui sou eu.
Pronto. O jogo foi para as cucuias. O Manchester comemorando a vitória por WO no campo do adversário. Urias chutou o Kichute longe. A plateia se retirando decepcionada.
De repente o Elieser assoviou. Tirou uma carta da manga. Imediatamente, o Ney acenou para o funcionário da prefeitura. Todo mundo estranhou. Quem era aquele sujeito? O juiz do jogo? Ele se aproximou. Com calma tirou um papel do bolso. Veio para junto do vizinho aborrecido. Era o comprovante da posse do terreno. Não esfregou o documento na cara do sr Feféu. Foi elegante. Aquele moço que fazia os carnês do IPTU em uma máquina Remington era o dono do pedaço.
Seo Feféu não abriu a boca. Nem o bico. Nunca mais falou com a gente.
Ninguém sabe até hoje, se foi aquela cena ou foi o treinamento intenso. O Manchester do Levildo perdeu a invencibilidade naquela tarde. A partir dali os sonhos de cada menino do América passou a ser ultrapassar os limites da Avenida Amazonas e da Avenida Paraná. Irem para outros campinhos.
Conquistarem vitórias em outras áreas.