Transtorno do Espectro do Autismo: você sabe o que é?

Estamos na semana de conscientização do autismo e no dia 2 de abril teremos o Dia mundial de conscientização sobre esse transtorno. Apesar de termos uma semana inteira voltada aos portadores de autismo, ainda são poucos o que sabem o que é isso e como essas pessoas se comportam.

O fato é preocupante, ainda mais quando analisamos os números. Como poucas pessoas sabem sobre o transtorno se, em 2010, a Organização Mundial da Saúde (ONU) estimou que ele atinja cerca de 70 milhões de pessoas em todo o mundo? Apenas no Brasil, temos dois milhões de autistas, ou seja, quase 1% da população.

Em uma matéria especial, o Jornal Agora escolheu três personagens para falar sobre o tema: Fernanda Basseto, mãe de uma criança autista, Márcia Serafini, autora de uma lei voltada a esse público e Jaqueline de Oliveira, psicóloga que atua há anos no atendimento a portadores do transtorno e seus familiares. Confira:

“Não existe cura para o que não é doença, mas mesmo que meu filho fosse ‘curado’, não seria ele. Eu o amo do jeito que ele é”

Aos 33 anos, a mandaguariense Fernanda Cristina Basseto Monteiro estava vivendo um grande sonho: ser mãe. “Eu curti cada segundo da minha gravidez, era tudo um sonho. Correu tudo dentro da normalidade, dentro do prazo. Quando o Fernando nasceu, eu nem queria dormir. Queria ficar acordada, olhando para o meu filho, admirando-o”, relembra.

Fernanda conta que o filho teve todos os marcos de desenvolvimento normais. “Ele engatinhou, sentou, andou na semana do aniversário de um ano e falou com dez meses de idade. O que percebi de diferente era que meu filho ficava muito doentinho. Teve duas pneumonias, muitas infecções respiratórias, e eu sabia que ele ficava mais doente do que as outras crianças. ”

Os sinais vieram e foram perceptíveis. Antes dos três anos, após ter uma virose, Fernando parou de falar. “Ele simplesmente parou. Quando saímos do hospital, notei que ele teve um comportamento estranho. Surgiu uma hiperatividade muito intensa, barulhinhos feitos com a boca e gemidos, e isso não parou mais”.

Fernanda visitou três neuropediatras e em todos o filho recebeu o mesmo diagnóstico. “Confirmaram que ele estava com Transtorno do Espectro Autista. No caso do meu filho, o transtorno foi diagnosticado como regressivo. Ou seja, com perda de habilidades. Porém, criança nenhuma pode perder habilidades no seu desenvolvimento até os três anos”, explica.

A descoberta não foi um momento fácil. “Foi angustiante, pois você não sabe o que acontecerá dali em diante. A única coisa que eu tinha em mãos era o estudo. E foi o que eu fiz. Comecei a ter insônias muito grandes e a única coisa que eu tinha para fazer era estudar. Então eu lia, todo dia eu via alguma coisa relacionada ao tema e este é um hábito que tenho até hoje. Acabei me aprofundando e me especializando no assunto, pois realmente acredito que o conhecimento desbanca o preconceito”, afirma.

A força e o conhecimento de Fernanda foram o chamariz para que outras pessoas se engajassem em prol dos autistas. “Mandaguari tem aproximadamente 35 pessoas autistas, dos mais variados níveis do transtorno. Nosso objetivo é criar uma associação, para que possamos nos unir e reivindicar o direito das pessoas autistas, que são cidadãos como todos os outros. ” Fernanda falou ainda sobre a importância de se conhecer o autismo. “Existe uma culpa com a mãe. Quando você recebe um diagnóstico, logo pensa ‘onde foi que eu errei? Como isso aconteceu? ’. Então, buscando conhecer o transtorno, você abre os horizontes, entende seu filho e por quê está daquele jeito. O olhar e o julgamento dos outros já não importam mais, pois você sabe o motivo do seu filho estar daquele jeito”, afirma.

Prestes a encerrar um mestrado cujo tema é a inclusão de autistas a partir da visão de mães de crianças com o transtorno, Fernanda conta que o segredo é não desistir. “Deve-se lutar pelo filho, pela família, pelos seus sonhos. Claro que teremos limitações, pois é uma questão que modifica nossa vida, mas não podemos perder a esperança. Eu amo meu filho do jeito que ele é. Não existe cura para o que não é doença e o autismo não é uma doença. Então eu sei que ele não vai ser ‘curado’. Mas, mesmo que fosse, não seria meu filho. ”

Sobre o futuro, Fernanda encerra com uma mensagem encorajadora. “Quero que, dentro das limitações que sei que meu filho tem, ele consiga progredir o máximo que pode, evoluindo cada vez mais. E, para isso, nós precisamos de políticas públicas, pois uma família sozinha não consegue. Por isso nós lutamos, pois é dever dos órgãos públicos cuidar dessas pessoas que são cidadãos. O maior medo dos pais de uma criança especial é o que será do seu filho quando ele não estiver mais vivo”, finaliza.

 

“A lei foi aprovada, sancionada, mas o nosso trabalho continua”

A vereadora Márcia Serafini foi autora da Lei 3.130/2018, que institui a Política Municipal de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista em Mandaguari. Em entrevista, ela contou como surgiu a ideia em sancionar algo em prol desse público. “Eu fui procurada pela Fernanda, que estava representando pais e responsáveis de pessoas autistas. Ela me entregou diversos artigos, me contou mais sobre a vivência dela e me questionou o que eu poderia fazer para auxiliá-los”, conta.

Serafini relembrou ainda que o interesse dos pais era de conseguir atendimento municipal para as crianças e adolescentes autistas. “A ecoterapia e a disponibilidade de profissionais capacitados era algumas das demandas, mas nós sabemos que é preciso muito mais. Quando se fala em saúde, vemos milhares necessidades. Mas alguns casos são peculiares, são pessoas que não estão de nenhuma maneira protegidas pelo Poder Público e que precisam de uma atenção maior, mais específica. E os autistas faziam parte desse grupo que estava desprotegido em Mandaguari, então nós precisávamos fazer algo”, afirma.

A lei foi sancionada em setembro do ano passado e entre suas determinações, estão: realizar no dia 2 de abril eventos e atividades voltadas para promoção e conscientização dos direitos dos autistas; expedição da Carteira de Identificação do Autista (CIA); obrigatoriedade da inserção nas placas de trânsito municipais ou avisos de atendimento prioritário o símbolo mundial do Transtorno do Espectro Autista em todos os estabelecimentos que exista atendimento prioritário; estimular a inserção da pessoa autista no mercado de trabalho, incentivar a formação e capacitação de profissionais especializados no atendimento à pessoa autista, promover qualificações aos profissionais de educação para lidarem com alunos autistas, entre outras.

Quando questionada sobre o sentimento de ser autora da lei, Márcia se emociona. “Pude, graças a Fernanda e aos pais que me procuraram, conhecer de perto a realidade das pessoas autistas. Sou grata à Deus e a cada um deles por confiarem em mim a responsabilidade de usar meu trabalho para fazer algo por elas. A lei está aí, aprovada, sancionada, mas o trabalho continua. Continuarei cobrando o Executivo municipal para que ela seja de fato aplicada. É um compromisso meu com a população. Isso não pode ficar só no papel e sei que tanto eu quanto a população vamos cobrar”, finalizou.

 

“É apaixonante tentar entender o mundo que o autista vive”

O Jornal Agora entrevistou ainda a psicóloga Jaqueline de Oliveira, que atua na clínica terapêutica Estrela de Davi e no Instituto de Desenvolvimento Autista (IDEA), ambos de Maringá. Há quatro anos acompanhando crianças autistas, ela também presta atendimento aos pais. Confira a entrevista a seguir:

 

Jornal Agora: Como explicar o que é Autismo?

Jaqueline de Oliveira: O autismo é um Transtorno Global de Desenvolvimento (TGD). Além dos diferentes transtornos do espectro autista, essa categoria engloba as psicoses infantis, a Síndrome de Asperger, a Síndrome de Kanner e a Síndrome de Rett. Eu costumo dizer que o autismo não tem um rosto. Não é uma doença ou uma deficiência, mas sim uma pequena alteração no filtro perceptível, pois as informações chegam para eles de uma forma muito rápida e agressiva. Eles têm os sentidos aguçados e tudo isso faz com que eles entendam, percebam e sintam o mundo de uma forma diferente das pessoas não autistas.

 

E tem alguma ligação com questões genéticas?

Não há nenhuma comprovação quanto a isso. Existem alguns estudos falando da influência de agrotóxicos na alimentação também, mas nada foi comprovado. O autismo não é uma variação genética, pois você não consegue perceber que uma pessoa tem o transtorno ao olhar para ela, como acontece com crianças com Síndrome de Down, por exemplo. Não há sinais físicos.

 

Como é feito o diagnóstico e como são definidos os graus de autismo?

É através de pequenos sinais que os pais conseguem desde cedo identificar se o filho tem ou não autismo, e sempre com relação à interação social. Crianças com TGD apresentam dificuldades em iniciar e manter uma conversa. Algumas evitam o contato visual e demonstram aversão ao toque do outro, se mantendo isoladas. Elas podem estabelecer contato por meio de comportamentos não-verbais e, ao brincar, preferem se atentar a objetos ao invés de interagir com as outras crianças. Outro fator comum são as ações repetitivas que essa criança pode demonstrar. Já clinicamente falando, hoje os diagnósticos podem ser levantados já a partir dos dois primeiros anos de vida pelos neurologistas ou qualquer outro médico. Às vezes pode ser muito cedo para falar com absoluta certeza que se trata de autismo, mas é possível diagnosticar. Quanto aos graus, dividimos em leve, moderado e severo. Entretanto, não há um definidor comum para eles. Por exemplo, a questão da fala. Eu posso ter uma criança diagnosticada com autismo leve que não fala e outra com autismo severo que fala. São vários fatores que contam para essa definição dos graus, então é só através do acompanhamento psicológico que conseguimos avaliar.

 

Como você enxerga a questão dos pais e como eles reagem ao saberem que o filho é autista?

O momento da descoberta é bem difícil. Como qualquer diagnóstico, os pais passam por um processo de luto, que é essencial. É bom que eles passem por isso, que identifiquem que será algo difícil, como criar qualquer filho, mas que é possível. O primeiro momento é bem pesado, mas é importante passar por ele e vir a aceitação e o amor, pois os pais também são fundamentais para que o trabalho aconteça. Eles são os que mais conhecem a criança, no dia a dia. São nossos parceiros no trabalho para que o autista se desenvolva, dando continuidade aos cuidados dentro de casa. É uma relação de troca entre nós profissionais e eles.

 

Em que ponto você sente que a sociedade deixa a desejar no amparo e acolhimento de pessoas autistas?

São várias questões. No próximo mês teremos a semana de conscientização do autismo, o que é importante, mas por si só é ineficaz. Explico, uma das iniciativas nesse período é o dia do cinema, por exemplo. As salas têm as luzes e os barulhos reduzidos para que os autistas que se incomodam com essas coisas possam ir assistir um filme. Mas o direito ao lazer é garantido a todos nós. Então por que não disponibilizar uma sala específica, para que essas pessoas possam ter acesso ao cinema o ano todo? Essa é apenas uma situação de muitas outras em que podemos notar que ainda nos falta muito no que diz respeito a políticas públicas. Precisamos avançar, precisamos integrar os autistas, dar oportunidades para que eles tenham todos seus direitos garantidos, apesar de suas limitações. Se as pessoas estudassem mais sobre o que é o autismo, conhecessem melhor as demandas desse público, com certeza a realidade seria diferente.

 

E o que dizer aos pais que desconfiam que o filho é autista, ou que receberam o diagnóstico recentemente e ainda estão tentando assimilar essa informação?

Vejo no olhar dos pais que atendo, no primeiro momento, um sofrimento, um medo do desconhecido. Mas depois de alguns meses, percebo um olhar de alívio, de quem enxergou a luz no fim do túnel e notou que é possível, que as conquistas virão dia a dia. Esses pais passam a entender que são capazes de ir além e quebrar as barreiras. Então o que posso deixar para os pais que estão nos lendo é que eles devem se tranquilizar. Acalmem seus corações pois é apaixonante tentar entender esse mundo que o autista vive. É um mundo extremamente pessoal e fantástico.

Às vezes os pais se enchem de expectativas e acabam se frustrando. Mas após entender como as coisas funcionam, eles entendem que as recompensas e vitórias vem aos poucos. Cada descoberta nova é motivo de alegria. ‘Meu filho me olhou hoje’, ‘ele segurou minha mão’, ‘ele disse mama, que é quase mamãe’… enfim, são coisas pequenas que, ao longo do processo, são recompensadoras. É preciso paciência, compreensão e muito amor.

*Reportagem publicada na 294ª edição do Jornal Agora